2001.doc
2001 chegou com festas, saudando a passagem do ano, da década, do século e do milênio. De tão esperado que era, chegou quase sem novidade, como um ano qualquer: convulsionado, tenso, furtivo, como vem sendo este tempo de mudanças.
Neste tempo, o mundo tornou-se uma aldeia, antes mesmo do que previra Macluhan. A evolução e revolução dos meios de comunicação transformaram nossas vidas pouco a pouco. Num átimo, passamos a achar natural assistir direto, ao vivo, da poltrona de nossa sala, a quebra de um recorde esportivo que acontecia do outro lado do mundo no dia seguinte ou as cenas de um terremoto que víamos na hora do jantar e estava acontecendo naquela manhã num pedaço de costa do Pacífico. Os “cérebros eletrônicos” experimentados no fim da guerra, no meio do século e que iniciaram sua popularização nos 70, tomaram conta da vida de cada um, tornado-se acessório indispensável ao trabalho e ao lazer. A conjugação destas duas revoluções nos proporcionou conhecer e conviver intensamente, ainda nos 90, com uma nova e inseparável companheira, a Internet, uma rede que nos pescou e nos impôs outro ritmo às vidas, outros termos ao vocabulário e valores comuns para interpretarmos as coisas.
Toda uma reformulação do ser, do poder ser, do crer, do viver passou sob meu nariz nestes últimos cinqüenta anos, os meus, com a mesma naturalidade da semente que rompe a casca, germina, torna-se broto, vira planta, dá folhas e frutos e lança outras sementes sobre a terra nua, no tempo entre duas estações.
2001 vinha chegando todo o tempo e quando chegou não era novidade. Como não eram novidades os sentimentos das pessoas, sempre os mesmos desde o início dos tempos, como não eram novidades os pecados, capitais e mortais, desde o início dos tempos, os mesmos.
As perguntas muitas delas respondidas pelo conhecimento, a cada dia mais refinado e amplo, geravam outras, cada dia mais complexas e inquietantes. A não resposta a todas elas continuava deixando um espaço vazio entre a racionalidade e a metafísica.
A tolerância continua um bem raro e, na falta de outros motivos, os seres humanos continuam a pelejar por qualquer causa ou dissensão. O novo mundo era velho, sobre muitos aspectos, embora mais conhecido, decifrado e com embalagem cada vez mais reluzente.
Agora não precisávamos mais de recorrer aos textos sagrados e ao saber erudito para sabermos um pouco sobre o conflito secular entre muçulmanos e judeus, podemos assisti-los matando-se todos os dias nas ruas de Jerusalém. Da mesma forma que muçulmanos e cristãos continuam pelejando nas fluidas fronteiras da Europa, ou, entre cristãos, protestantes e católicos disputam uma certa e inexplicável hegemonia no norte da ilha da rainha. Podemos assisti-los matando-se em todos os rincões, em nome de Deus, do Deus de cada um e que, cada um, ainda, pretende que seja melhor que o do outro.
Agora não precisamos ser iniciados em história para sabermos que a África é um continente esquecido pela humanidade e relegado a um plano marginal no consumo dos benefícios tecnológicos do desenvolvimento, podemos assistir seus povos sendo cotidianamente dizimados pela fome, pela miséria, pelas guerras tribais, pelos artefatos de guerras passadas esquecidos nas savanas, pelas doenças novas que ali nascem, como o próprio ser humano parece ali ter nascido, a dali se propagam para nos apresentar novas e mais eficazes e cruéis formas de morrer.
Agora não podemos esconder a vergonha dos contrastes sociais dos países latino-americanos, do Brasil, das nossas cidades. A violência cotidiana decorrente da pobreza extrema e da miséria à que estão condenados desde o nascimento muitos de nossos irmãos e irmãs, nos é noticiada de tal forma e tão intensamente que tornamo-nos indiferentes às manifestações diárias deste processo, com o qual também convivemos no mundo real, tropeçamos em nosso dia a dia. Assustamo-nos com a notícia, com a imagem virtual e ignoramos a imagem real, numa indecifrável confusão entre o que é e o que parece ser.
A fantasia confunde-se com a realidade, como a aparência parece sobrepor-se à essência, cada vez mais neste novo tempo.
Com 2001 o novo milênio chegou, mas já havia chegado, esteve aqui sempre incorporando-se ao nosso cotidiano, como a luz do sol, que nasce todos os dias ou o negror da noite que cobre a existência e marca a passagem das horas desde o início dos tempos. Somos dia e noite todo o tempo. E todo tempo vemos ressurgir a esperança “porque esperança é só coisa boa”.
De um lado, vemos ressurgir a solidariedade como um caminho para a superação de velhas idiossincrasias. De outro, vemos se afirmar a cupidez, como forma de manter as coisas como estão. De um lado, vemos a pregação da tolerância e da ética e repetimos a ladainha com as mil vozes e pelos milhões de meios que hoje temos disponíveis e de outro, vemos prevalecer a ganância, a inveja e a falta da mesma ética tão apregoada.
2001 não é a novidade da odisséia no espaço. Já fomos até lá, continuamos indo, e ainda deixamos para traz muitas respostas. 2001, também, não nos trouxe a tão apregoada ressurreição ou o juízo final. Trouxe-nos isto sim, já nos havia trazido, em telas de cristal líquido com cores e sons indiscutivelmente belos e reais, a tragédia humana para ser partilhada por todos.
Lega-se para 2001 dois caminhos definitivos para o milênio que se inicia: o cinismo e a indiferença diante do que não mais podemos ignorar embaralhando-nos cada vez mais na confusão entre o real e o virtual, o conveniente e o incômodo, ou, como outra alternativa, a disposição real para reconhecer que não passamos de um grupo de seres irmanados pelo mesmo mistério de existência concreta confinada entre a vida e a morte, condenados a sobreviver numa biosfera de recursos finitos, cujo o grande desafio será administrá-la de forma a dela retirar apenas o necessário à conquista da felicidade para todos, nesta e nas próximas gerações.
Parece uma escolha simples, a resposta mesma parece obvia. Apenas parece.
O legado de 2001 também não é novo e está ai presente, pelo menos desde que se descobriu que a Terra era redonda e que caminhando sempre em frente conseguiríamos chegar no mesmo lugar de onde partíramos. Lugar de onde, desde então, nem voltamos a partir ou, se partimos, para onde temos sempre voltado.
Esta na hora de empreendermos uma nova jornada, possivelmente, na direção deste segundo caminho jamais trilhado coletivamente. Talvez se começarmos a caminhar, mesmo que passo a passo, mesmo que cada um consigamos formar um grande cordão e alcancemos juntos um lugar novo, a mudança esperada, a boa nova de 2001...Vamos?
Rio de Janeiro, 03/ janeiro / 2001
Alexandre Santos
2001 chegou com festas, saudando a passagem do ano, da década, do século e do milênio. De tão esperado que era, chegou quase sem novidade, como um ano qualquer: convulsionado, tenso, furtivo, como vem sendo este tempo de mudanças.
Neste tempo, o mundo tornou-se uma aldeia, antes mesmo do que previra Macluhan. A evolução e revolução dos meios de comunicação transformaram nossas vidas pouco a pouco. Num átimo, passamos a achar natural assistir direto, ao vivo, da poltrona de nossa sala, a quebra de um recorde esportivo que acontecia do outro lado do mundo no dia seguinte ou as cenas de um terremoto que víamos na hora do jantar e estava acontecendo naquela manhã num pedaço de costa do Pacífico. Os “cérebros eletrônicos” experimentados no fim da guerra, no meio do século e que iniciaram sua popularização nos 70, tomaram conta da vida de cada um, tornado-se acessório indispensável ao trabalho e ao lazer. A conjugação destas duas revoluções nos proporcionou conhecer e conviver intensamente, ainda nos 90, com uma nova e inseparável companheira, a Internet, uma rede que nos pescou e nos impôs outro ritmo às vidas, outros termos ao vocabulário e valores comuns para interpretarmos as coisas.
Toda uma reformulação do ser, do poder ser, do crer, do viver passou sob meu nariz nestes últimos cinqüenta anos, os meus, com a mesma naturalidade da semente que rompe a casca, germina, torna-se broto, vira planta, dá folhas e frutos e lança outras sementes sobre a terra nua, no tempo entre duas estações.
2001 vinha chegando todo o tempo e quando chegou não era novidade. Como não eram novidades os sentimentos das pessoas, sempre os mesmos desde o início dos tempos, como não eram novidades os pecados, capitais e mortais, desde o início dos tempos, os mesmos.
As perguntas muitas delas respondidas pelo conhecimento, a cada dia mais refinado e amplo, geravam outras, cada dia mais complexas e inquietantes. A não resposta a todas elas continuava deixando um espaço vazio entre a racionalidade e a metafísica.
A tolerância continua um bem raro e, na falta de outros motivos, os seres humanos continuam a pelejar por qualquer causa ou dissensão. O novo mundo era velho, sobre muitos aspectos, embora mais conhecido, decifrado e com embalagem cada vez mais reluzente.
Agora não precisávamos mais de recorrer aos textos sagrados e ao saber erudito para sabermos um pouco sobre o conflito secular entre muçulmanos e judeus, podemos assisti-los matando-se todos os dias nas ruas de Jerusalém. Da mesma forma que muçulmanos e cristãos continuam pelejando nas fluidas fronteiras da Europa, ou, entre cristãos, protestantes e católicos disputam uma certa e inexplicável hegemonia no norte da ilha da rainha. Podemos assisti-los matando-se em todos os rincões, em nome de Deus, do Deus de cada um e que, cada um, ainda, pretende que seja melhor que o do outro.
Agora não precisamos ser iniciados em história para sabermos que a África é um continente esquecido pela humanidade e relegado a um plano marginal no consumo dos benefícios tecnológicos do desenvolvimento, podemos assistir seus povos sendo cotidianamente dizimados pela fome, pela miséria, pelas guerras tribais, pelos artefatos de guerras passadas esquecidos nas savanas, pelas doenças novas que ali nascem, como o próprio ser humano parece ali ter nascido, a dali se propagam para nos apresentar novas e mais eficazes e cruéis formas de morrer.
Agora não podemos esconder a vergonha dos contrastes sociais dos países latino-americanos, do Brasil, das nossas cidades. A violência cotidiana decorrente da pobreza extrema e da miséria à que estão condenados desde o nascimento muitos de nossos irmãos e irmãs, nos é noticiada de tal forma e tão intensamente que tornamo-nos indiferentes às manifestações diárias deste processo, com o qual também convivemos no mundo real, tropeçamos em nosso dia a dia. Assustamo-nos com a notícia, com a imagem virtual e ignoramos a imagem real, numa indecifrável confusão entre o que é e o que parece ser.
A fantasia confunde-se com a realidade, como a aparência parece sobrepor-se à essência, cada vez mais neste novo tempo.
Com 2001 o novo milênio chegou, mas já havia chegado, esteve aqui sempre incorporando-se ao nosso cotidiano, como a luz do sol, que nasce todos os dias ou o negror da noite que cobre a existência e marca a passagem das horas desde o início dos tempos. Somos dia e noite todo o tempo. E todo tempo vemos ressurgir a esperança “porque esperança é só coisa boa”.
De um lado, vemos ressurgir a solidariedade como um caminho para a superação de velhas idiossincrasias. De outro, vemos se afirmar a cupidez, como forma de manter as coisas como estão. De um lado, vemos a pregação da tolerância e da ética e repetimos a ladainha com as mil vozes e pelos milhões de meios que hoje temos disponíveis e de outro, vemos prevalecer a ganância, a inveja e a falta da mesma ética tão apregoada.
2001 não é a novidade da odisséia no espaço. Já fomos até lá, continuamos indo, e ainda deixamos para traz muitas respostas. 2001, também, não nos trouxe a tão apregoada ressurreição ou o juízo final. Trouxe-nos isto sim, já nos havia trazido, em telas de cristal líquido com cores e sons indiscutivelmente belos e reais, a tragédia humana para ser partilhada por todos.
Lega-se para 2001 dois caminhos definitivos para o milênio que se inicia: o cinismo e a indiferença diante do que não mais podemos ignorar embaralhando-nos cada vez mais na confusão entre o real e o virtual, o conveniente e o incômodo, ou, como outra alternativa, a disposição real para reconhecer que não passamos de um grupo de seres irmanados pelo mesmo mistério de existência concreta confinada entre a vida e a morte, condenados a sobreviver numa biosfera de recursos finitos, cujo o grande desafio será administrá-la de forma a dela retirar apenas o necessário à conquista da felicidade para todos, nesta e nas próximas gerações.
Parece uma escolha simples, a resposta mesma parece obvia. Apenas parece.
O legado de 2001 também não é novo e está ai presente, pelo menos desde que se descobriu que a Terra era redonda e que caminhando sempre em frente conseguiríamos chegar no mesmo lugar de onde partíramos. Lugar de onde, desde então, nem voltamos a partir ou, se partimos, para onde temos sempre voltado.
Esta na hora de empreendermos uma nova jornada, possivelmente, na direção deste segundo caminho jamais trilhado coletivamente. Talvez se começarmos a caminhar, mesmo que passo a passo, mesmo que cada um consigamos formar um grande cordão e alcancemos juntos um lugar novo, a mudança esperada, a boa nova de 2001...Vamos?
Rio de Janeiro, 03/ janeiro / 2001
Alexandre Santos
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