terça-feira, 22 de julho de 2008

COPACABANA - um conto da passagem do milênio

Chegara enfim ao século XXI. Vivia só naquele pequeno apartamento, na sua amada Copacabana, bairro aonde morava há mais de 40 anos. Os filhos dispersaram-se pelos caminhos e o encontravam em datas festivas e mesmo assim eventualmente, já que não viviam na cidade e tinham lá suas responsabilidades. Felizmente, não dependia deles. Tinha seu cantinho e a aposentadoria, que dava para pagar os remédios, o choppinho, ainda, e as refeições parcas. Às vezes até conseguia economizar algum para ir visitar os netos. Coisa cada vez mais rara, já que eles também não eram mais crianças e também tinham suas vidas em construção.

Com exceção de um ou outro problema crônico e próprio da idade, quase oitenta anos, tinha uma saúde relativamente boa, aparência razoável e, sobretudo, alegria de viver. O sol, a praia cotidiana, as caminhadas diárias, as braçadas no mar e até uma ou outra partidinha de vôlei lhe asseguravam isto.

De modo que vivia ali, com suas recordações, lembranças já meio apagadas da companheira que havia partido há mais de dez anos, e com os amigos da geração, que cada vez mais eram também lembranças. Restavam poucos, cada um com suas mazelas, mas, pelo menos com aqueles que como ele viviam em Copacabana, sempre era possível umas boas risadas, um joguinho nas mesinhas do Lido, os goles nos botecos da Prado Junior, a visão das belas e a evolução, ou involução, formidável das indumentárias, em especial no verão. Havia dois amigos inseparáveis, desenvolveram-se profissionalmente juntos, eram praticamente vizinhos e, além disso, em comum tinham a solidão e o modo de vida. Quando estavam juntos, não havia solidão, quando estavam juntos havia um pouco mais de juventude.

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Conheceram-se no Leme Tênis Clube em meados dos 50. As três famílias constituídas há pouco mais de dez anos, tinham em comum, o clube que freqüentavam, a euforia dos projetos de vida se construindo, crianças saudáveis em vésperas da puberdade, mulheres bem tratadas e bem dotadas, esmeradas donas de casa e mães, e apartamentos recém comprados na maravilhosa Copacabana. Todos, com decoração da moda, vitrolas de Alta Fidelidade e televisão. Caminhavam juntos para a compra do primeiro automóvel. Moviam-se pela e na euforia desenvolvimentista daqueles tempos. E tinham empregos seguros, funcionários públicos que eram, e salários razoáveis já que também possuíam curso superior. Vidas bem traçadas, futuros infalíveis. Encontraram-se ali na Shangrilá dos anos dourados.

Ele e sua família não vinham de longe, saíram até de bem perto, da Zona Norte do Rio, do Andaraí, da vila onde passara a infância e onde conhecera a esposa, na Araripe Junior. Vida de subúrbio, de pelada na rua, de pipas nas calçadas, de escola pública, de apertos extremos, de religiosidade, de sacrifícios dos pais e de passeios no Bonde Praça Verdún - Praça XV, bailes no Grajaú e no Tijuca Tênis Clube e sonhos de crescer, virar doutor e morar em Copacabana.

O Almeida, e sua família vinham de um pouco mais longe, mas não muito. Do interior de Minas, de Conselheiro Lafayete. Onde o pai, ferroviário, educara os filhos para serem igualmente ferroviários. O Almeida, entretanto formou-se contador e após um emprego na Central, conseguira uma colocação no Banco do Brasil, e logo depois uma transferência para a capital da república. Trabalhando na sede do Banco, pode mudar-se com a esposa e a única filha, diretamente para viver perto do mar de Copacabana, seu sonho infantil.

O Brito, nordestino, viera de Recife concluir aqui seu curso de Direito. Filho de família mais abastada chegara solteiro ao Rio dos anos 40, e ali mesmo em Copacabana casara-se com a uma bela moça, filha de um comerciante local. Casaram-se tarde e ainda tinham filhos pequenos. O Brito, engraçado, vinha de mais longe, mas era o mais familiarizado com Copacabana. Dizia esnobe: “Sou um homem de Copacabana, aqui me formei, aqui amei pela primeira vez, aqui casei e não saio daqui nem morto”.

Como moravam todos ali entre a República do Peru e a Santa Clara, freqüentavam o mesmo clube, a mesma praia e suas famílias cresceram praticamente juntas, suas vidas se entrelaçaram desde então.

Praticamente, foram fundadores da Banda da Paula Freitas. E no carnaval, os três eram vistos sempre juntos, na frente do cordão. Vestidos de mulher embrenhavam-se Copacabana adentro e afora e construíam histórias que alimentaram suas gargalhadas na velhice. As esposas lhes faziam a concessão no período momesco e se limitavam a esperá-los na quarta-feira de cinzas. Era a única concessão, entretanto. As outras farras eram sempre feitas por baixo do pano, ao gosto ou à moda da hipocrisia da época. Segredos absolutos, apenas revividos ou recontados, não sem floreios maiores, nos tempos tardios quando já eram sós.

Reuniam-se com as esposas às sextas-feiras, para um jantar alegre e romântico, às vezes iam dançar nas boates da moda e cruzavam com gente do high society, confundindo-se com eles, naquela glamourosa Copacabana dos anos 50. Os encontros de sexta à noite eram quase religiosos. Tempos bons, do JK, dos novos automóveis, de Marta Rocha e Adalgisa Colombo, do campeonato mundial de 58, vingança tardia do vexame do Maracanã, em 50. Do menino Pelé surgindo, dos cariocas Garrincha e Didi, todos fenomenais, da Bossa Nova e do beco das Garrafas, seu berço, bem ali, ao lado deles em Copacabana.

Nos anos 60, assistiram e participaram ativamente da resistência à invasão esquerdista que minava a família e o bem viver, subvertia e distanciava-os dos filhos, que cresciam com idéias de revolução comunista. Uns ingratos. Os dois filhos do Brito, mais novos, desapareceram nesta aventura revolucionária e juntos sofreram as perdas imensas. Um deles se soube, foi morto. O outro, o mais velho desapareceu sem deixar rastros. A mulher dele nunca mais foi a mesma. Morreu de tristeza a coitada. O Brito, o “homem de Copacabana”, foi o primeiro a ficar só, e entregou-se, ainda relativamente moço, ao trabalho e a esbórnia. Jamais quis constituir outra família, e recuperou a alegria nos copos e nos corpos das moças da Prado Junior e da Princesa Izabel.

A filha do Almeida, mais ajuizada, arranjou um gringo, casou-se e foi morar nos Estados Unidos. A esposa vivia entre a casa e as visitas à filha, dilapidando a poupança da família nessas viagens. Ele, em troca, vivia sua liberdade semi-consentida. Um dia, já nos setenta, nasceu-lhe o primeiro neto. Foram ambos conhecer, passaram uma temporada lá e Almeida voltou só. A esposa ficou ajudando a filha, voltou umas outras duas vezes aqui, vivia tentando convencer o Almeida a ir morar nos States: “Aquilo sim era lugar civilizado! Digno da vida que merecia e sonhara”. Almeida, irredutível, alegava que seu lugar era em Copacabana e que não era nenhum ricaço, tinha responsabilidades na repartição e tinha mesmo que cumpri-las para sustentar os luxos da família mal acostumada. Foram lentamente se separando. Numa das voltas da esposa, veio à baila um caso do Almeida. Pronto! Foi o bastante para que a separação de fato, se tornasse de direito e Almeida foi o segundo a ficar só. Era o começo dos anos oitenta.

Ele mesmo foi afinal o que teve vida familiar mais duradoura e sem grandes sobressaltos. Seus filhos, principalmente sua filha, também se envolveram com a política nos anos sessenta e setenta, mas, mais maduros e com a idade adulta começando, trataram de por suas vidas em marcha. A filha, muito aplicada e envolvida intelectualmente com ideais revolucionários, foi estudar em Paris. E por lá ficou, nunca se casou, mas ali se estabeleceu, virou professora da Universidade de Paris e naturalizou-se francesa. Mantém contato carinhoso com ele, mas nunca ou quase nunca, vem ao Brasil. Enquanto a esposa era viva, eles iam visitá-la e são boas as recordações que tem daquelas viagens. A menina era um orgulho. Só tinha aquela coisa esquisita de nunca ter um namorado, e embora, como a mãe, também fosse uma mulher muito atraente, vivia, ou vive, só com uns gatos e cercada de muitos amigos e principalmente amigas.

O filho fez concurso para trabalhar no Congresso Nacional, tornou-se assessor da bancada de oposição consentida do então MDB, mudando-se para Brasília, onde arrumou, e bem, sua vida por lá. O filho e a nora goiana que ele conheceu em Brasília, lhe deram os dois netos que já caminhavam para dar-lhe bisnetos. Enquanto a esposa era viva e os netos pequenos as idas e vindas para Brasília eram constantes. Com a morte da companheira os encontros tornaram-se cada vez mais escassos. A tristeza e a solidão invadiram sua vida e sua alma.

Vendeu o imóvel da família, distribuiu aos filhos suas partes, comprou um apartamento menor ali pela Viveiros de Castro e foi aos poucos retomando o contato cotidiano com o Brito e com o Almeida.

Os anos 90 foram anos de retomada de caminhos para os três. Não que tivessem rompido, ou se afastado. Mas o crescimento dos filhos, as diferenças de trajetórias e a maturidade dos casais determinaram algum distanciamento. Claro, acompanharam juntos e foram solidários com as perdas do Brito. Tentaram ajudar nas dissensões entre o Almeida e sua mulher. Mas à medida que eles foram ficando sós as relações entre ele e sua família e os novos solteirões padeceram de um necessário afastamento. Viam-se eventualmente, recebiam os amigos em casa em alguns domingos, mas não era a mesma coisa. O vôlei na rede da Paula Freitas era o principal ponto de fidelidade entre os três homens e claro a cervejinha religiosa depois do suor. Nos 90, voltavam a ficar em igualdade de condições e Copacabana, embora muito transformada, revista, revisada estava ali mesmo para afagar-lhes as almas.

O reencontro permitiu que se ajudassem mutuamente no esquecimento das tristezas, e no preenchimento dos espaços deixados com os acontecimentos em cada vida. As perdas dele, mais recentes, e a longa vida com a companheira o deixavam mais rabugento, mais resistente, mais velho que os outros, embora, de fato, não o fosse.

Mas isto não durou muito. A persistência dos amigos e as muitas histórias vividas em comum, logo lhe devolveram a alegria de viver e por conseqüência melhores condições de saúde.

Logo estava nos barzinhos até tarde. A mexer com as moças, a jogar porrinha, a discutir futebol. Copacabana tinha tantos barzinhos! E durante os dias havia aquele ócio à beira mar. É não dava para ficar rabugento.

Moviam-se mesmo a recordações. Lembraram com freqüência da Avenida antes da duplicação, do novo calçadão, quando discutiam sobre se foi melhor ou pior para o bairro, aquela mudança tão drástica. Não chegavam a um consenso! Lembravam-se da avenida sendo cada vez mais ocupada pelos edifícios, “agora já nem restavam casas, era mais bonito antigamente”. “É, mais hoje mais gente pode desfrutar desta vista maravilhosa, hoje é melhor”. “Não, antes era muito melhor”. Discordavam.

Não paravam de falar dos bailes e dos shows no Copa, dos jantares no Vogue, no Florentino, no Bife de Ouro, no Ouro Verde, no Alcazar, do luxo daqueles anos bons. Nisso concordavam, eram mesmo luxuosos aqueles anos 50 e 60.

Lembravam-se das comemorações pelos campeonatos de futebol. A de 62 foi chocha, nem havia televisão, bom mesmo foi o desfile em carro aberto quando os rapazes voltaram do Chile. Bi-campeões. A da copa de 70, ainda na avenida estreita, foi uma apoteose. Um porre inesquecível. Também aquela seleção merecia. O tetra campeonato em 94 teve muita comemoração, mas não teve o mesmo sabor e nem estavam juntos. De pênalti...

E do carnaval. Ah! O carnaval, que maravilha. Aquelas farras vestidos de mulher, o cheiro da lança perfume, as belezuras, se mostrando todas, rebolando sem parar com as marchinhas, depois as bandas. Este era o assunto preferido. Mas também não havia muito consenso. Concordavam que era muito melhor do que hoje. Divertiam-se mais. Os homens vestidos de mulher eram homens e gostavam de mulher, depois os pederastas tomaram conta de tudo e agora havia as Drag Queens. Mas discordavam quanto à sensualidade das mulheres. As de hoje se expunham mais, rebolavam mais, eram mais indecentes, no carnaval ou fora dele. Brito então, que ficara novo solteiro antes, adorava aquela exposição. Almeida e, principalmente, ele gostavam mais das formas sugeridas, dos decotes que insinuavam os seios, daquela exposição velada e mais excitante de outrora. “Essa mulherada pelada, não dá margem à imaginação, à fantasia”, argumentava. “E quem precisa de fantasia, se a gente tem a forma verdadeira ao nosso alcance”, refutava veemente o Brito.

O erotismo estava sempre no ar, seja pela visão eloqüente das moças seminuas a caminho da praia, seja pela recordação dos velhos tempos e dos velhos casos, seja ainda pelas pequenas aventuras de sedução, que lhes davam a falsa ilusão da conquista, no convívio com as amigas, “garotas de programa”, já não tão garotas, que dividiam com eles os balcões dos botecos do Beco da Fome, e depois dos barzinhos ali do Lido nesses novos tempos. Com a invenção da “pílula azul”, o erotismo às vezes chegava a termo e tinham a recompensa de uma atividade sexual há tempos adormecida. Bem, se havia um consenso a respeito das maravilhas do mundo moderno, este se dava em torno desta portentosa invenção da medicina. Não esperavam viver para ver isto e muito menos para usufruir o benefício.

Quando chegavam perto das festas do fim do ano, as emoções se dividiam entre a nostalgia dos velhos tempos dos natais em família e a alegria da festa de reveillon na praia, para saudar o novo ano. Sobre os natais era invariável a recordação dos filhos abrindo os presentes, do champagne e das ceias, quando tantas vezes estiveram juntos. Fotos amareladas, recordações que lhes impunham o reconhecimento de que o tempo passara a havia muita história e muita perda. E, de outro lado, a expectativa da festa de ano novo na praia de Copacabana, uma atração nacional que ano a ano se engrandecia e trazia as luzes da cidade, do país, do mundo para o bairro querido. Sentiam-se como pioneiros de uma transformação positiva. Cada um, juntos ou separados, havia passado pelo menos 30 reveillons na praia nos últimos 40 anos.

Lembram dos primeiros tempos das festas onde prevalecia o som do atabaque, a imagem das baianas vestidas de branco e girando, das oferendas à Iemanjá e da tradição de vestir branco que se consolidava, tudo com som dos rojões Caramuru que cada grupo levava. Uma barulheira infernal. Depois, os comerciantes, começaram a montar aqui e ali pontos de fogos de artifício, consolidando uma outra tradição. A cascata do Merídian, um marco. Depois a Prefeitura da cidade assumiu o comando da festa, fogos em profusão, para todo lado, e cada vez mais gente para vê-los, todos vestidos de branco. Depois ainda os shows de cantores em palcos imensos, assegurando mais atrativos para a festa monumental.

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Dois milhões de pessoas era a expectativa dos organizadores para o reveillon do milênio. 2001 o ano da odisséia no espaço chegaria finalmente, e ele estava ali de prontidão para testemunhar. Alegria imensa, de estar vivo, e ainda feliz com a vida apesar de tanta estrada, apesar de tanta perda. Ele, o Brito e o Almeida, fiéis amigos, e mais quatro amigas da noite, todas pela faixa dos cinqüenta, estavam no calçadão, numa mesinha reservada pra eles no Bolero, velho Bolero, que tanto havia mudado, mas que mantinha aquele ar de antigamente, entre o brega dos bordeis e a sofisticação das chopperias turísticas à beira-mar. Mesa cativa. Festa inigualável. Grupo mais animado não havia, pareciam meninos e meninas no folguedo maior de Copacabana.

O novo milênio, entretanto, deixou à mostra as marcas do tempo e a dificuldade de enfrentar com a mesma galhardia a passagem das horas. Ainda em 2001, o fígado do Brito, tão experimentado, “deu pau”, como se diz na gíria. Tomou conta de seu organismo uma cirrose sem volta. Tempos difíceis de hospital, o São Lucas, claro, pois o Brito não admitia se tratar em outro lugar que não fosse Copacabana, de remédios e de dores. Neste tempo apareceram uns parentes do Brito, cheios de desvelo. Sobrinhos e sobrinhos netos, que nós, amigos fiéis nunca havíamos visto ou ouvido falar. Mas era assim mesmo, sempre há perto de uma carcaça moribunda um bando de urubus a esperar as sobras. Ele então, que tinha o maior patrimônio de três e não tinha herdeiros diretos, haveria de ter um monte de aves de rapina a comboiar sua alma. O Brito não se incomodava com nada disso. Achava bom que pelo menos nessa hora estivessem ali. Só fazia questão de duas coisas: que não lhe tirassem do São Lucas e que fosse cremado e suas cinzas fossem jogadas, da madrugada, no mar de Copacabana, pois dali como repetira a vida toda: “não sairia nem morto”.

Fez dele e do Almeida testemunhas e responsáveis para que os desvelados sobrinhos não o deixassem na mão, depois da partida. Brito partiu antes do reveillon de 2002, suas cinzas foram ao mar. E ele e Almeida ficaram órfãos.

Em 2002, foi a vez do Almeida. Morte estúpida e inesperada. Caminhava na noite, com uma amiga da noite, nas ruas desertas da madrugada do Lido. Não temia nada, aquele território era dele, sempre fora. Meio alto afogava suas mágoas e solidões nos ombros da amiga amada, quando lhes cercaram alguns destes moleques que cada vez mais viviam nas ruas de Copacabana. Diabretes inconvenientes. Marcas de um tempo ruim, uma espécie de sarna que foi proliferando pelas ruas do bairro quase imperceptivelmente e que lhe corria a beleza e a vida pouco a pouco. Almeida não percebia e não aceitava esta doença em seu bairro, reagindo com veemência quando alguém a denunciava: “Não é nada disso, são uns pequenos miseráveis, frutos do crescimento das cidades e das injustiças do mundo. São vítimas!”, dizia ele, “e não existem só aqui não, garanto que lá nos States, onde vive minha filha, a coisa não é melhor, vocês é que tem mania de desvalorizar o que têm.” Para o Almeida, Copacabana não tinha defeitos. Paradoxalmente, justo ele, foi vítima das vítimas, que tentavam lhe assaltar. Reagiu indignado e foi empurrado com força, e chutado e violentado. Desacordado e sem assistência, morreu ali mesmo numa calçada da Duvivier. De testemunha, só a amiga, que também fora espancada. Mas, atendida, conseguiria sobreviver, sem, entretanto, conseguir se lembrar exatamente como tudo acontecera.

A filha e o genro vieram dos Estados Unidos cuidar das exéquias e dos procedimentos judiciais posteriores. Fizeram tudo o mais rapidamente possível e retornaram assustados à civilização: “Terra de bárbaros, de índios...bem fez a minha mãe que foi viver conosco nos Estados Unidos”, dizia ela, sempre que encontrava alguém que, como ele, conhecera na juventude. Para ele, ainda acrescentava: “O senhor me desculpe, mas meu pai mereceu isto, morreu de teimoso”. Acusava o velho pai, que de vítima passara, em sua versão da história, a vilão.

Ele, não reagia, concordava com um sorriso mudo e pensava com seus botões: “Você não sabe de nada minha filha. Não sabe que até os oitenta anos seu pai ainda era capaz de amar, de beber, de sorrir. A vida lhe fluía nas veias como os automóveis que andavam ruidosos pelas ruas da Copacabana que ele tanto amava”. Pensava, mas não dizia. Pra que? Que ela achasse que ele era um velho teimoso e infeliz, sobretudo, se isso a fazia melhor.

O fato é que a partida dos dois amigos quase em seguida, acabou com ele, com a alegria que ainda tinha, com a saúde que lhe restara. Os mais de oitenta anos começaram a lhe pesar nas costas subitamente, como se em um lapso, finalmente, tivesse ficado velho. Muito velho.

Caminhava às vezes, pelas ruas do bairro. Às vezes parava para uma cervejinha com um conhecido de pé de balcão. Às vezes até ia à praia tomar um pouco de sol. Mas tudo deixava de ter graça. E cada vez mais, confinava-se em seu apartamento, a ruminar seus pensamentos antigos. Os achaques lhe vieram e os remédios eram cada vez em maior número e mais freqüentes. Ele que nunca fora amigo da televisão dividia seu tempo entre ver televisão, sobretudo os tele-jornais, e as idas à farmácia e aos médicos. Felizmente, estava em Copacabana, onde tudo havia.

Pouco saía para comer, apenas uma vez ou outra, na maioria das vezes pedia uma comida ou um sanduíche do Cervantes. Entregavam, em casa e pronto. Não encontrava alegria nas coisas e não entendia o sentido da vida sem alegria, mas, ao mesmo tempo, apegava-se a ela num paradoxo incompreensível.

Não entregava os pontos para os filhos e netos, que ligavam uma vez por mês, os ingratos. Para eles sempre dizia que ia bem e que não lhe tirassem dali, tinha o que queria e vivia, como sempre, com a alegria que lhe marcara a imagem diante dos outros. Os filhos acostumados àquela conversa não percebiam o que se passava. Ele, entretanto, que sempre convivera com eles desta forma distante e gentil, que impunha a distância como forma de preservar sua liberdade e intimidade, agora os considerava uns ingratos, uns desnaturados, uns infelizes.

Em seus pensamentos tinha sempre críticas para eles, para todos, para as notícias dos tele-jornais, para o próprio bairro, que tanto amava e no qual vivera boa parte de sua vida.

Tornara-se enfim um velho solitário de Copacabana, como tantos. O bairro já não era o mesmo. Ele já não era o mesmo. A vida já não era a mesma. Mas ali viveria, com paradoxal apego, seus últimos dias, naquele espaço que lhe parecia cada vez mais exíguo, cada vez mais mesquinho, como ele mesmo.


Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 2004
Alexandre Santos